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Os dilemas jurídicos e éticos na recusa terapêutica - Paciente Testemunha de Jeová

 

JUNHO 16, 2022 | ELAINE MAIOLLI | BLOG

Um dos temas mais polêmicos da bioética, a recusa terapêutica está cada vez mais presente na rotina diária dos hospitais, a questão que passaremos a analisar é a recusa terapêutica diante da religião, como é o caso dos testemunhas de jeová.

 

Temos inúmeras questões que precisam ser avaliadas na tomada da decisão, o médico assistente deverá procurar o Diretor Técnico e Diretor Clínico, departamento jurídico e Comissão de Bioética do hospital (se houver), quando encontrar-se diante um caso como esse.

 

Atualmente, a recusa terapêutica é regida pela Resolução CFM nº 2.232/2019, em seu texto revogou expressamente a Resolução CFM nº 1.021/1980, que tratava dos casos de pacientes que, por motivo religioso, recusavam a transfusão de sangue.

 

No entanto, a questão deve ser analisada do ponto de vista amplo, vez que abarca outros assuntos, tais como, ortotanásia Resolução CFM 1.805/2006 e Diretiva Antecipada de Vontade Resolução CFM nº 1.995/2012, devendo, ainda, ser ponderada, conforme as normas estabelecidas no Código de Ética Médica.

 

O conflito começa justamente quando o paciente testemunha de jeová adentra na emergência, com risco iminente de morte, e de imediato informa que não aceita que seja realizada transfusão de sangue, caso seja necessário. Como o médico deve proceder?

 

O paciente teria autonomia para decidir se realiza ou não a transfusão de sangue? Essa decisão do paciente poderia caracterizar ortotanásia? A religião poderia sobrepor o direito à vida? A recusa ao procedimento de transfusão de sangue poderia ser compreendida como uma espécie de Diretiva Antecipada de Vontade (DAV)?

 

A questão não pode ser analisada sob a ótica do dogma religioso, e sim sob o ângulo jurídico e ético que envolve toda a situação.

É preciso esclarecer que para qualquer tomada de decisão por parte do médico, é necessário que o paciente esteja informado e esclarecido de todos os riscos e consequências para ser validada a autonomia do paciente e o Dever Informacional.

 

Apenas para esclarecimento, a autonomia está presente na relação médico-paciente como um direito de ambos os lados, no entanto, a autonomia do médico somente pode ser exercida quando não causar malefício ao paciente, por exemplo, diante da recusa terapêutica, poderá alegar objeção de consciência no momento do atendimento.

 

O médico não é obrigado a praticar ato que contrarie os ditames de sua consciência, exceto nas situações: (i) ausência de outro médico, (ii) urgência/emergência ou (iii) quando o seu ato possa causar dano a saúde do paciente.

 

Voltando ao caso, quando o médico está diante de uma situação de urgência e emergência, a qual o paciente está em iminente risco de morte, a decisão precisa ser rápida, nesse momento, deve ser comunicado o Diretor Técnico e Clínico para avaliação em conjunto da decisão a ser realizada. Caso a transfusão de sangue seja a única forma de salvar a vida do paciente, temos como respaldo o artigo 11 da Resolução CFM nº 2.232/2019, e artigos 22 e 31 do Código de Ética Médica, senão vejamos:

 

Resolução CFM nº 2.232/2019, artigo 11: “Em situação de urgência e emergência que caracterizam iminente perigo de morte, o médico deve adotar todas as medidas necessárias e reconhecidas para preservar a vida do paciente, independentemente da recusa terapêutica”. (grifo nosso)

Art. 22. Deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morte. (grifo nosso)

Art. 31. Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de prática diagnóstica ou terapêutica, salvo em caso de iminente risco de morte. (grifo nosso)

 

Após salvar a vida do paciente, o médico deverá se resguardar, anotando tudo em prontuário (situação clínica, diagnóstico, prognóstico, recusa terapêutica, o porquê da realização do procedimento, etc..)

 

Agora você deve estar se perguntando, e se o paciente estivesse adentrado no hospital para uma cirurgia eletiva? Qual deveria ser a conduta do médico?

 

Antes de analisar essa hipótese, é necessário considerar: O paciente é maior de idade, possui capacidade cognitiva, lúcido, consciente? Porque para o paciente ter o poder de decisão, é necessário que tenha plena capacidade cognitiva.

 

O paciente tem o direito a recusa terapêutica, cabendo ao médico dispor todas as alternativas terapêuticas, a fim de esgotar todas as possibilidades.

 

Retomando o questionamento, quando estamos diante de um quadro clínico estável do paciente, a questão deve ser avaliada com cautela, envolvendo Diretor Técnico e Clínico, departamento jurídico, e Comissão de Bioética do hospital (se houver), porque nesse caso, teríamos duas possibilidades de condutas que poderiam ser realizadas.

 

A primeira alternativa, é respeitar a autonomia do paciente, conforme estabelece os artigos 1º e 2º da Resolução CFM 2.232/2019, transcrito abaixo:

 

Art. 1º. A recusa terapêutica, em termos da legislação vigente e na forma desta Resolução, um direito do paciente a ser respeitado pelo médico, desde que esse o informe dos riscos e das consequências previsíveis de sua decisão. 

 

Art. 2º. É assegurado ao paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, no momento da decisão, o direito de recusa à terapêutica proposta em tratamento eletivo, de acordo com a legislação vigente.

Parágrafo Único. O médico, diante da recusa terapêutica do paciente, pode propor outro tratamento quando disponível.

 

Devendo ser registrada todas as informações no prontuário, colher Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e Termo de Recusa de Terapêutica (podendo ser este gravado através de vídeo) – artigo 12 Resolução CFM 2.232/2019.

 

A segunda possibilidade de conduta profissional, seria após o médico ter aplicado todos os métodos de tratamento possíveis, não obtendo êxito na melhora no quadro do paciente, e diante da recusa de transfundir, seria a via judicial, através do pedido de liminar obter autorização para realizar a transfusão de sangue no paciente.

 

Nesse cenário, estaríamos diante do confronto autonomia do paciente x preservação do direito à vida x liberdade religiosa (amparado pela Constituição Federal, artigo 5º incisos II e IV), justamente o dilema que encontramos hoje perante o sistema jurídico.

 

Decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo

 

Em 2019 tivemos uma decisão proferida pela 3ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a qual manteve sentença de 1º Grau, na qual havia autorizado os médicos a realizarem a transfusão de sangue em uma paciente que recusava por motivos religiosos, a decisão foi unânime. O Relator do recurso do TJ/SP Desembargador Marrey Uint, justificou na decisão que o direito à vida e a liberdade religiosa são direitos fundamentais pela Constituição Federal, no entanto, o direito à vida prevalecer[i].

 

Por outro lado, também no ano de 2019, no recurso de Agravo de Instrumento, proferida pela 6ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, o Relator Desembargador Paulo Alcides Amaral Salles, entendeu pela autonomia do paciente, sob o fundamento que se tratava de pessoa adulta, consciente, em plena condição de exercer seus direitos[ii].

 

Processos pendentes de julgamento no Supremo Tribunal Federal

 

É certa a instabilidade jurídica referente ao tema aqui discutido, entretanto, no Supremo Tribunal Federal temos dois grandes debates sobre a questão, pendentes de decisão, quais sejam:

 

      - ADPF 618: foi proposta com o objetivo de assegurar e respeitar a autonomia do paciente, que não seja obrigado, compelido a realizar procedimento cirúrgico com transfusão de sangue, caso sua vontade seja contrária.

 

A segunda tese que encontra-se pendente de julgamento, traz em seu mérito o conflito liberdade religiosa x dever do Estado de assegurar a prestação de serviço médico.

 

   - Tema 952 - Repercussão Geral: Discute a possibilidade do Estado custear no SUS tratamentos alternativos quando tratar-se de transfusão de sangue.

 

Decisão do Conselho Federal de Medicina - CFM

 

No âmbito ética, temos decisão pelo CFM no sentido que deve ser respeitada a autonomia do paciente, conforme ementa colacionada abaixo:

Processo CFM nº 000654/2000 (origem CRM/SP) – Relator Jose Mauricio Batista. EMENTA: PROCESSO ÉTICO-PROFISSIONAL. RECURSO DE APELAÇÃO. PRELIMINARES ARGÜIDAS: NULIDADE DO PROCESSO DEVIDO EQUÍVOCOS NA ATA DE JULGAMENTO, ABSTENÇÕES E FALTA DE DOCUMENTOS IMPORTANTES. DESCARACTERIZADA INFRAÇÃO AOS ARTIGOS 1º, 2º, 29 E 57 DO CEM. REFORMA DA PENA DE “CENSURA CONFIDENCIAL EM AVISO RESERVADO” PARA ABSOLVIÇÃO. I- Não há que se falar em nulidade do processo, posto que a suposta confusão na ata não gera qualquer prejuízo à parte. A Abstenção citada em ata não diz respeito a impedimento de natureza pessoal, mas sim simples ausência física momentânea de membros no Conselho no momento da colheita de votos. Não houve prejuízo para parte recorrente, pois houve quorum, suficiente para se chegar ao resultado obtido. Não há que se falar em prejuízo de defesa devido a ausência de documentos importantes, uma vez que tais documentos são os votos da primeira sessão de julgamento, que estão presentes nos autos. II- A médica deixou de fazer transfusão de sangue à uma paciente em obediência à sua vontade expressa previamente. Como não se deve desrespeitar a autonomia da paciente, foi absolvida. III- Preliminares rejeitadas. IV- Apelação conhecida e provida. (grifo nosso)

ACORDÃO: Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os Conselheiros membros da 2ª Câmara do Tribunal Superior de Ética Médica do Conselho Federal de Medicina, por unanimidade de votos, em conhecer e, por maioria, dar provimento ao recurso interposto pela apelante, reformando a decisão do Conselho de origem, que lhe aplicou a pena de "CENSURA CONFIDENCIAL EM AVISO RESERVADO", prevista na letra "b", do artigo 22 da Lei 3.268/57, para ABSOLVIÇÃO, descaracterizando infração aos artigos 1º, 2º, 29 e 57 do Código de Ética Médica, nos termos do voto divergente.

 

Conclusão

 

Como podemos verificar o sistema jurídico é incerto quando falamos em recusa terapêutica de pacientes testemunha de jeová, a tomada de decisão pelo profissional de saúde deve ser pautada na cautela, considerando que cada caso é um caso, devendo ser analisado em sua peculiaridade, tendo em vista a ausência de segurança jurídica ao profissional.

 

O objetivo desse artigo foi trazer uma visão ampla sobre o assunto, e questionamentos para reflexão, vez que apesar do Conselho Federal de Medicina trazer diretrizes em suas Resoluções, temos que considerar que perante o Poder Judiciário a norma ética não possui força de Lei.

 

 

Ademais, é preciso considerar também, dependendo do contexto da situação, caso o médico opte por respeitar a autonomia do paciente, e esse vier a óbito, poderá responder na área cível e criminal (omissão de socorro ou homicídio culposo).

 

Como disse anteriormente, o tema traz inúmeros questionamentos e possibilidades jurídicas, como por exemplo, já parou para pensar, caso o paciente for menor de idade, como deveria ser a conduta do médico? Ou então, paciente é testemunha de jeová e a família não profetiza da mesma religião, como dirimir esse conflito? Outra hipótese, paciente incapaz (Alzheimer), necessita de transfusão, possui registrado Diretiva Antecipada de Vontade (elaborada quando encontra-se em plena faculdades mentais), informando que não quer receber transfusão de sangue, por questões religiosas. Como resolver essa questão?

 

Nota-se que estamos diante de conflito de princípios X valores religiosos. Quando estamos diante desse cenário, temos que compreender que a transfusão de sangue é considerada uma mácula na vida espiritual da pessoa, é exatamente perder seu “pertencimento” na vida. Ultrapassar esse limite com a imposição do tratamento não estaríamos afrontando o princípio da dignidade humana?

 

Veja o assunto é extenso, controvertido e polêmico, e traz muitas reflexões e indagações jurídicas para estudo, essa é a essência apaixonante no Direito e na Bioética, transcender inúmeras alternativas, buscando uma abordagem interdisciplinar, visando adequar as normas jurídicas aos valores éticos e morais cultivados pela sociedade. 

 

Qual sua opinião sobre o assunto? Vamos conversar.

 

 

Referências:

 

[i] Matéria do site do Migalhas: https://www.migalhas.com.br/quentes/311755/autorizada-transfusao-de-sangue-em-paciente-contraria-ao-procedimento-por-motivo-religioso

[ii] Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Agravo de Instrumento nº 2178279-13.2019.8.26.0000, 6ª Câmara de Direito Privado, Data de Julgamento: 14/08/2019 https://www.tjsp.jus.br/

Conselho Federal de Medicina (CFM) - Jurisprudências: https://sistemas.cfm.org.br/jurisprudencia/controle/detalheJurisprudenciaExterna

Resolução CFM 2232/2019: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2019/2232

Código de Ética Médica: https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf